
Biólogo e indigenista Daniel Cangussu revela a complexidade que circunda os povos indígenas que optam pelo isolamento e explora em detalhe a chamada ciência mateira, que decifra os rastros que orientam expedições de proteção e monitoramento. Foto: Sesc SP.
Funcionário da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) desde 2010, Daniel Cangussu integra a equipe dedicada à proteção dos territórios de povos indígenas isolados e de recente contato na Amazônia. Em ‘Vestígios da floresta: povos refugiados da Amazônia’, novo lançamento das Edições Sesc São Paulo, ele une outras vozes à sua vasta experiência de campo a amplia o debate por meio de pesquisas de caráter transdisciplinar.
Movido pelo crescente interesse público nos povos indígenas isolados e pelas ameaças do extrativismo predatório e do agronegócio na Amazônia, Cangussu revisitou sua dissertação de mestrado, defendida em 2021 no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e nos apresenta uma releitura desse trabalho, integrando estudos de botânica, ecologia, arqueologia e indigenismo à proteção e ao monitoramento dos povos indígenas isolados.
A edição traz ainda fotografias das expedições indigenistas captadas no cenário amazônico, com destaque para a imagem da capa: uma fotografia inédita do renomado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que fotografou os Suruwaha em 2018. Ele também assina o prefácio da obra.
No texto de introdução, Cangussu lembra que a morte do último indígena de um povo isolado, conhecido como ‘Índio do Buraco’, em 2022, “reacendeu o debate sobre esses povos, chamando a atenção para o intrigante cenário amazônico”. No mesmo ano, o assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, que atuavam diretamente na proteção dos territórios desses povos, evidenciou ainda mais esse “sensível e dramático cenário”. O autor traça um panorama da situação dos povos isolados e da atuação dos ‘indigenistas mateiros’, como ele, que têm a tarefa de monitorar e proteger esses povos sem estabelecer contato direto com eles. Ele ainda explica e defende a condição de ‘refugiados’ desses povos dentro do território brasileiro.
A ciência mateira
Segundo Cangussu, a ‘ciência mateira’ integra não apenas o conhecimento científico, mas também a sabedoria tradicional dos habitantes da floresta. A ciência e o ofício do indigenista mateiro representam um saber que traduz rastros, plantas e artefatos deixados pelos povos indígenas, além de orientar expedições de proteção e monitoramento realizadas por esses profissionais. O autor relata que seu trabalho sempre despertou grande curiosidade e dúvidas, e que, no livro, ele busca responder às perguntas mais frequentes que recebe sobre os povos isolados e sobre sua própria atuação. Para alcançar um público mais amplo, Cangussu optou por uma linguagem mais leve e acessível no decorrer do livro, evitando, sempre que possível, o uso excessivo de citações e terminologias típicas da linguagem acadêmica.
“Povos compulsoriamente refugiados”
No texto da quarta capa do livro, a antropóloga e professora emérita da Universidade de Chicago Manuela Carneiro da Cunha afirma que os indígenas isolados “não são povos que recusam a história e não nos conhecem. Pelo contrário, conhecem-nos bem demais”. Eles são, na verdade, povos “compulsoriamente refugiados nas florestas que restam”. Já no texto da orelha, a indigenista e ativista Marina Kahn também relembra os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Philips e afirma que, naquele momento, Cangussu “entendeu que precisava ir além dos aspectos ecológico e antropológico de sua pesquisa para fazer ecoar, também, seu entendimento sobre o indigenismo e a relevância do sertanista em ambientes quase sempre hostis”.
“A leitura das histórias inscritas nas árvores e trilhas pode revelar saberes essenciais para imaginarmos e construirmos mundos mais ricos e diversos, tanto biológica quanto culturalmente.” (Luiz Deoclecio Massaro Galina, diretor do Sesc São Paulo)
A política do não contato
No primeiro capítulo, o autor descreve a política de não contato, esclarecendo por que muitos povos amazônicos optam por não ter ligação com os não indígenas. Ele explica sua opção por usar a expressão “indígenas em isolamento compulsório”, por acreditar que a ideia de isolamento em si diz pouco sobre esses grupos. Até onde se sabe, os povos atualmente isolados alguma vez tiveram contato com os não indígenas, mas, em determinado momento, passaram a evitá-los devido aos riscos inerentes a essa relação. Para tanto, se viram obrigados a abrir mão de porções da floresta onde esse contato poderia ocorrer.
Para ilustrar isso, Daniel Cangussu traz um panorama histórico do contato entre indígenas e colonizadores europeus e como isso significou um verdadeiro genocídio, com uma queda demográfica de cerca de 90% nas populações indígenas nos dois primeiros séculos de colonização. O refúgio em áreas da floresta de mais difícil acesso foi inicialmente uma resposta dos indígenas para resistir a esse genocídio e, no século XX, o isolamento acabou se tornando uma política do Estado brasileiro para proteger os povos remanescentes. O autor contextualiza como essa política se desenvolveu por meio da atuação de sertanistas, de indigenistas e da Funai.
Arbustos, galhos e sementes como geolocalizadores
No capítulo seguinte, Cangussu introduz a ideia de ciência mateira. No texto de orelha, Marina Kahn define essa ciência como aquela “para a qual arbustos quebrados ou sementes descartadas são convertidos em informações acerca da mobilidade e da territorialidade dos povos indígenas isolados”. Para o autor, “é aquela cujo rol de conhecimentos nativos é aprendido a partir do convívio milenar com as florestas”. Esse saber orienta-se por pistas concretas, embora quase imperceptíveis para quem não tem o olhar treinado para identificá-las. A partir desses indícios e resíduos, é possível “remontar lapsos de vida e intenções humanas”.
‘O perigo de uma história única’ e a invisibilidade de mulheres indigenistas
Neste capítulo, ‘outras vozes’ começam a se intercalar com a narrativa de Cangussu, como a do mateiro José Lopes dos Sales Apurinã e a da indígena Mandeí Juma, que trazem seus relatos e perspectivas. Um dos subcapítulos, ‘O perigo de uma história única’, aborda e busca enfrentar a invisibilidade das mulheres indigenistas. Na história das expedições amazônicas, os protagonistas quase sempre são homens. Para Cangussu, “a não participação de mulheres indígenas e mateiras nas ações de campo desempenhadas pelas Frentes de Proteção Etnoambiental pode gerar vícios metodológicos graves”.
A presença humana na floresta
O terceiro capítulo, ‘Os caminhos da floresta’, traz fundamentações ecológicas e botânicas associadas à pesquisa acadêmica e à experiência indigenista do autor, que se coloca como um discípulo daqueles que o acompanham nas expedições, os guias mateiros, quase sempre indígenas. Cangussu aborda como, ao caminhar pelos ‘varadouros’ – trilhas que conectam aldeias, acampamentos e outros assentamentos –, a floresta, que vista de cima parece intocada, se revela permeada pela ação humana. A quebra de galhos e arbustos é uma das ações mais comuns e, para o autor, esses vestígios apresentam um amplo significado comunicativo.
Ele explica também o que diferencia os caminhos feitos por humanos e por outros animais e o que as árvores e outras espécies vegetais revelam sobre a história e a arqueologia da Amazônia. Um dos subcapítulos aborda as ‘tiradas de mel’, por exemplo, um sinal da presença de indígenas não contatados que é representativo da relação entre os humanos e outros animais – no caso, as abelhas melíferas.
No capítulo final, o biólogo se aprofunda nos desafios e limitações metodológicos para a produção etnográfica sobre os povos isolados e, para exemplificar, relata e faz uma análise de um encontro entre ribeirinhos e indígenas isolados nas cabeceiras do igarapé Canuaru, no sul do Amazonas. Lá, habitam os Jamamadi, os Jarawara, os Banawa e, presume-se, os Hi-Merimã, ainda isolados e com população estimada em cem pessoas. Os Hi-Merimã mantiveram intensos contatos com os povos indígenas de seu entorno até, pelo menos, 1960. Porém, os assentamentos permanentes de não indígenas na região os levaram a se isolar. O capítulo traz um depoimento do senhor Domingos, ribeirinho que pertence a uma família que emigrou do Ceará fugindo das secas e tornou-se extrativista na Amazônia.
SOBRE O AUTOR
Daniel Cangussu nasceu em 1983, na cidade de Águas Formosas, no Vale do Mucuri (MG). Graduou-se em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e se especializou em Tecnologias Aplicadas ao Ensino de Biologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). No início de 2021, concluiu o mestrado em Gestão de Áreas Protegidas na Amazônia, pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Atua há 15 anos como indigenista da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), onde passou a integrar o quadro de servidores que se dedica à proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato na Amazônia. Atuou ainda com os povos indígenas do Vale do Jequitinhonha e do Vale do Mucuri, com os quais permanece desenvolvendo projetos de pesquisa. Tem estabelecido parcerias com pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, sendo o diálogo interdisciplinar um traço fundamental de seus trabalhos em ecologia histórica e em etnobotânica.
SOBRE AS EDIÇÕES SESC SÃO PAULO
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Ficha técnica:
Vestígios da floresta: povos indígenas refugiados da Amazônia
Autor: Daniel Cangussu
Edições Sesc São Paulo, 2024
Número de páginas: 204
ISBN: 978-85-9493-311-9 (Ed. Sesc SP)
Preço de capa: R$ 80,00
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(Com Diego Zebele/Edições Sesc São Paulo | Comunicação)